Biblioteca da Aldeia

Nova carta do Caminha

Ter

12

Jun

2007


17:06

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Veríssimo

Senhor: Posto que o capitão-mor desta vossa frota, assim como os outros capitães e o piloto escrevam a Vossa Alteza sobre onde estamos e como aqui chegamos, cabe-me relatar o que vimos, pois se, como escritor, pouco sei de marinhagem e singraturas, muito sei de espantos.

A partida de Belém para Calicute, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. No domingo, 22 do dito mês, nos vimos em calmaria à vista da Ilha de Cabo Verde, e rezamos todos por uma aragem que dali nos deslocasse, e tanto rezamos que do horizonte ergueu-se um rosto gigantesco, desses que se vêem nos mapas soprando os ventos, e perguntou: "Sois portugueses?". À nossa reposta positiva, e dado que o Mar é o Tejo sem as margens e nele reina Portugal, inflou suas bochechas quilométricas e nos pôs a caminho como Vossa Alteza é servida. Mas soprou demais, tanto que atravessamos não apenas léguas mas séculos, e antes de toparmos com a nova terra topamos com seus nativos, que nos cercaram, montados em barulhentos bichos anfíbios que na língua deles é "jetisquis". Foram eles que nos disseram, no seu linguajar que em alguns momentos parece cristão e em outros não, que sua terra se chamava "Bahia", que estávamos no ano 2000 e que, sim nos guiariam até a praia. Na língua deles "sim" é "oquei".

Ao desembarcarmos na praia fomos cercados por um gentio pardo, todos seminus, alguns com argolas nas orelhas, no nariz ou no umbigo ou com desenhos feitos na pele. As mulheres mal cobrem suas vergonhas, que são limpas das cabeleiras, e quando perguntamos, com gestos, que nome davam às vergonhas glabras, reponderam "de-pi-lação". Os nossos não acertaram a pronúncia, pois quando dias depois Nicolau Coelho disse que queria "de-pi-lação" foi levado para um lugar afastado onde algo lhe aconteceu que ele nunca nos contou, mas obviamente não era o que esperava. As moças andam com os peitos destapados e os peitos são altos e roliços. Peito, na língua deles, é "silicone", se bem os entendemos.

Aos poucos, usando a mímica, e já que todos eram extremamente amáveis, fomos aprendendo o linguajar do gentio e detalhes da sua vida e dos seus costumes. Eles comem em grandes construções chamadas "mac-do-naldis", ou refeitórios, e sua comida consiste em rodelas de carne moída entre pedaços de pão, às vezes com queijo, e nacos de um vegetal que ainda não conhecíamos, uma espécie de inhame chamado "fritas". Bebem um líquido preto, a "coca", ou cerveja. Vivem em construções de pedra de diversos andares mas muitos parecem morar em pequenas choupanas de metal enfileiradas, uma atrás da outra, chamadas "engarrafamento", e que, embora tenham rodas, não se mexem, pois não há cavalos para puxá-las. Outros vivem em casas mal construídas, com tábuas e latas ou dormem ao relento mesmo, pois o clima é ameno e dispensa cobertor e teto. As casa de muitos andares são chamadas de "flat", "flat services" ou outras palavras que, estranhamente, lembram o inglês. O que levou Bartolomeu Dias a sugerir que os ingleses talvez tenham estado por aqui, o que nos pôs todos a rir, pois, como bem sabe Vossa Alteza, nem em 500 anos a Inglaterra se igualará a Portugal como potência marítima, ora tem piada.

Eles usam uma espécie de dinheiro, que chamam de "porcaria", e aqui como em Portugal uma minoria tem muito e a maioria tem pouco. Com a diferença que aqui a minoria não é nobre, e portanto com o direito divino a ter muito, como em Portugal. O sistema de governo é monáquico e o rei é chamado de "antônio carlos", mas quando pedimos para falar com o líder deles houve uma grande discussão, com alguns querendo nos levar para um lado e outros para o outro, e concluímos que divergem sobre quem é o seu "antônio carlos".

Eles parecem não ter religião, embora passem muito tempo sentados em volta de um tabernáculo do qual emana uma intensa luminosidade, e que chamam de "novela", mas quando o padre frei Henrique, a pedido do nosso capitão-mor, celebrou a primeira missa na praia poucos demonstraram interesse. Um dos nativos aconselhou o padre frei Henrique a modificar a liturgia para atrair o pessoal e na segunda missa nosso bom padre cantou e dançou e pediu para todos cantarem com ele, e o gentio veio e cercou o altar improvisado e mostrou grande devoção, mas roubaram a cruz.

A terra, Senhor, é mui formosa. Águas são muitas, infindas, e em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto que nela se pode fazer será salvar essa gente, mesmo que me pareça que para isso já é tarde. E por falar em salvar, peço que Vossa Alteza me faça a singular mercê de mandar vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro, e salvar um casamento. E assim partiremos desta vossa nova terra para Calicute, onde esperamos chegar antes dos ingleses. Todos menos o padre frei Henrique, que decidiu ficar e fazer carreira.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.


Luis Fernando Veríssimo
Texto publicado na Folha de Londrina em 22.04.00
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